SÉRIE - RETHINKING SUSTAINABLE DEVELOPMENT GOALS
3.Mar.2017
a jacinta. a jacinta era uma mulher velha. o seu ventre outrora planície fértil era agora um relevo que há muito tinha deixado de florir. os seus seios outrora firmes e redondos eram agora pêndulos sem norte . as linhas que riscavam o seu rosto eram agora as memórias que a mantinham. o seu cabelo tinha perdido a abundância e na escassez agora mostrava acentuada calvície. calvície que a jacinta disfarçava com uma peruca de cabelo farto. peruca que não era igual ao cabelo que teve mas que para o efeito servia. bonita e arranjada. bonita e arranjada. bonita e arranjada - repetia a jacinta para nunca se esquecer que era mulher bonita. vivia a jacinta numa aldeia esquecida. aldeia esquecida porque por lá ninguém passava nem nidificava. esquecidos eram também os tempos em que nada era assim. a jacinta não sabia o que se tinha passado nem com o seu corpo nem com a sua aldeia. aldeia onde tinha nascido mulher. aldeia onde tinha crescido mulher-mãe. aldeia onde sem saber tinha envelhecido-mulher. a jacinta não tinha medo de morrer. a jacinta tinha medo de um dia deixar de conseguir andar e ser esquecida em casa. por isso todos os dias calçava os seus sapatos de verniz azeitona verde. vestia o seu vestido negro de algodão e colocava um lenço na cabeça não fosse o sol queimar. bonita e arranjada. bonita e arranjada. bonita e arranjada - repetia a jacinta para nunca se esquecer que era mulher bonita. os sapatos de azeitona verde tinham-lhe sido oferecidos pelo antónio por altura de um aniversário que a conta a jacinta esqueceu. a jacinta agradecia a deus pelos seus pés ainda se manterem finos e sem joanetes. afinal. os pés da jacinta eram a única parte do corpo que tinha sido poupada à deformação. bonita e arranjada. bonita e arranjada. bonita e arranjada - repetia a jacinta para nunca se esquecer que era mulher bonita. todos os dias a jacinta caminhava para o cemitério da aldeia. no cemitério a jacinta fazia um périplo pela sua vida. a jacinta começava pela campa dos pais onde os cumprimentava com cerimónia. ao lado dos pais estava a sua irmã emília e estava o seu irmão henrique. a jacinta sentava-se e falava com eles sobre os bichos da vizinha que tinham acabado de ter crias. sobre as alfaces que não tinham vingado e sobre as batatas que a chuva tinha abençoado. depois a jacinta parava na campa do manel. o manel era o único filho da jacinta. com o manel a jacinta falava sobre a filosofia e sobre a arte da vida. o manuel sempre acompanhou a jacinta nas tertúlias sobre se a arte moderna deveria ser considerada uma manifestação artística ou um capricho. a jacinta achava que a arte moderna era um capricho. o manel não. porém a diferença sempre os aproximou. ao lado do manuel existia um espaço que seria o seu. depois estava o antónio. o antónio tinha morrido há duas primaveras mas a jacinta ainda sentia o cheiro do cachimbo do antónio a cobrir as paredes e as roupas da casa. a jacinta apesar de sentir já não ter idade para o amor sentia o coração a palpitar de saudade sempre que se lembrava do antónio. na campa do antónio a jacinta perdia horas a falar como se sentia estranha num corpo que secava diariamente. como se sentia estranha numa mente que a enganava sempre que não estava atenta. e como se sentia estranha numa aldeia cada vez mais vazia. a jacinta e o antónio sempre falaram muito um com o outro. a jacinta recordou-se daquele dia em que o antónio a surpreendeu nua no quarto. ela tentou tapar o seu corpo velho mas ele delicadamente a impediu despindo-se também. ambos olharam para o corpo um do outro com os olhos de quem tinha encontrado a forma eterna da profundidade do amor. a jacinta considerava ter tido muita sorte em ter casado com o antónio e ter crescido com o seu amor. depois de falar com o antónio a jacinta ia para casa. pelo caminho a jacinta largava sempre lágrimas de muita saudade pois quem lhe importava morava ali naquele lugar... ao chegar a casa a jacinta fazia umas papas porque era só o que conseguia mastigar. um dia aconteceu a jacinta sentar-se na sua velha poltrona e esquecer-se que tinha de acordar. a jacinta foi encontrada pela amiga joaquina que à aldeia contou que o antónio tinha encontrado a jacinta bonita e arranjada.
#ODS1 + #ODS2 + #ODS3 + #ODS#4 + #ODS5 + #ODS 6 + #ODS7 + #ODS8 + #ODS9 + #ODS10 + #ODS11 + #ODS12 +#ODS13 + #ODS14 + #ODS15 #ODS16 + #ODS17 PEDIMOS DESCULPA, A TODAS AS PESSOAS IDOSAS QUE EM PORTUGAL TÊM MEDO DE SER ESQUECIDAS EM CASA.