SÉRIE - RETHINKING SUSTAINABLE DEVELOPMENT GOALS
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o carlos. o carlos trabalhava num talho e talhava a carne como quem talhava a madeira e lia o labirinto da anatomia da árvore da vida humanidade. o carlos começou a trabalhar ainda nem barba tinha. numa idade que não era idade-trabalho. mas. como o carlos tinha corpo o pai levou-o para o matadouro. o matadouro era na altura o maior negócio da aldeia e todo o sustento da aldeia girava em torno do que o matadouro dava. só trabalhava no matadouro quem provas de humanidade dava sendo considerado o melhor local para domar a força a um mancebo. no matadouro trabalhavam os homens mais fortes e mais corajosos da aldeia pois amansar um bicho era só para homens bravos. bravura medida pelo coração capaz de incinerar os demónios da irracionalidade. o pai do carlos sabia disso e dizia-lhe: os bichos transformam os homens em melhores homens. a missão da mãe do carlos era outra. a mãe do carlos preocupava-se em escolher os livros certos para o carlos. livros que colocava por debaixo do travesseiro do carlos. livros que abriam o pensamento do carlos para um mundo ainda por criar. a comida desenvolve o corpo e os livros desenvolvem a alma - palavras de mãe percorridas em anotações que respondiam às incertezas do crescimento do carlos. o carlos quis um dia deixar o matadoro mas ao ver como o joaquim salgado brito (o rapaz novo que tinham contratado para o substituir) tratava os animais decidiu ficar. o carlos não admitia que ninguém matasse um animal sem que para os olhos do animal olhasse com sublimada humildade e compaixão. este era um ideal do carlos que ninguém mais entendia. com o tempo o carlos passou de rapaz a homem. o tempo no matadouro tinha sido uma lição de vida que só compreendeu mais tarde quando o pai o chamou para uma conversa. o pai do carlos explicou-lhe então que nos olhos dos bichos o homem consegue ver o que em si tende a esquecer. o homem tem a ideia de que é maior que o bicho mas o cheiro a medo e a raiva são cheiros de bicho presentes no suor de todo o homem: só o olhar de um homem com força e integridade de alma consegue moldar a vontade de um bicho - disse o pai ao carlos. o carlos viu um brilho nos olhos do pai e sabia ter passado pela iniciação a que o pai o submetera. hoje o carlos fazia anos. para lá tinham ficado os longos tempos do matadouro. o carlos tinha tirado o dia porque queria pensar na vida. o carlos andava desanimado. algo intrigava o carlos. era como se um nevoeiro melancólico lhe cobrisse a mente e lhe gelasse os ossos. no início o carlos até andava entusiasmado com o novo emprego. tinha a oportunidade de falar com gente. gente que o elogiava pela forma como cortava a carne. gente que lhe pedia conselhos. gente que suspirava. gente que sorria. gente que exigia. gente que fazia piadas sobre a economia. gente que não parava. mas algo assustava o carlos: os olhos que encontrava na gente que passava pelo seu talho faziam-lhe lembrar os olhos dos bichos do matadouro. olhos sem brilho. olhos que não sabiam ao que vinham. olhos de medo. olhos que afligiam o carlos. o carlos decidiu então fazer o mesmo que fazia aos bichos do matadouro: olhar aquela gente nos olhos. estranhamente (e ao contrário dos animais) as pessoas baixavam os olhos e desviavam o olhar para depois pelo talho do carlos não aparecerem mais. o carlos até comentou o facto com o luís alberto mendes. o luis alberto mendes era ainda tenro pois pouca carne lhe tinha passado pelas mãos e tinha um hábito que complicava com o sistema nervoso do carlos: olhava vezes sem conta para o relógio num gesto que repetia várias vezes ao longo do dia. mais tarde descobriu o carlos que o luís alberto mendes contava o tempo para ir ter com a namorada. namorada vegan que obrigava o luís alberto mendes a tomar banho antes de se encontrar com ele. o luís alberto mendes parou para ouvir o que o carlos dizia e respondeu: o problema das pessoas, sr. carlos, não é os olhos mas a alma que perderam! o carlos prestou atenção às palavras do luís alberto mendes para concluir que o rapaz até era capaz de ter razão. foi assim que o carlos decidiu não trabalhar no seu dia de anos. tinha de pensar. andava a perder clientela e o gerente da loja fazia questão em lhe mostrar os números. porém. não eram os números que entristeciam o carlos mas o facto de não conseguir salvar os seus clientes com o poder do seu olhar. o dia-seguinte trouxe ao carlos o desalento do nada-conseguir-saber. o carlos abraçou o trabalho sem o calor do propósito que lhe aquecia o espírito. já nem as olhadelas obsessivas do luís alberto mendes para o relógio o incomodavam. decidiu o carlos ir para a câmara frigorífica e ser ele a escrever o inventário do dia. mas a roda da sorte tinha virado. o talho estava apinhado de gente que gritava por ele. luís alberto mendes correu a chamar o carlos. o carlos despiu o colete e dirigiu-se para o balcão para com espanto constatar que os clientes já não desviavam o olhar. os clientes tinham um brilho de gratidão que encontrava o seu olhar. o carlos respirou fundo e recuperou o folgo da vida. afinal o seu olhar ainda tinha dom. o carlos continuou a talhar a carne como um artesão produz a-obra e não hesitava em aplicar a humanidade do seu olhar à gente que pelo seu talho passava. havia gente que perdia. mas era mais a gente que salvava. poderia o carlos ter ambicionado um ofício diferente? talvez. mas a alma-humanidade teria perdido muito com isso.
#ODS1 + #ODS2 + #ODS3 + #ODS#4 + #ODS5 + #ODS 6 + #ODS7 + #ODS8 + #ODS9 + #ODS10 + #ODS11 + #ODS12 +#ODS13 + #ODS14 + #ODS15 #ODS16 + #ODS17 OBRIGADA, A TODA A PESSOA-COMUM, QUE ATRAVÉS DO SEU OFÍCIO, INVERTE A EXTINÇÃO DA HUMANIDADE.
ODS = Objetivo de Desenvolvimento Sustentável